A inscrição rupestre do Cabeço das Fráguas (Sabugal,
Portugal)
A primeira referência conhecida a esta inscrição figura nas
Memórias Paroquiais do séc. XVIII, em que o pároco de Pousafoles do
Bispo menciona existir "em todo o cume" do Cabeço das Fráguas "uma
pequena planície, e uma lage virada ao Nascente com uns caracteres
que se não deixam conhecer" (Curado, 1989:350). É, contudo, a
partir da publicação em 1959, de Adriano Vasco Rodrigues, que esta
inscrição conhecerá o interesse da comunidade científica, tendo
desde então, sido objecto de aturados estudos linguísticos e
etimológicos. A lage encontra-se disposta ao nível do solo, no cume
do Cabeço das Fráguas (fig.1), maciço granítico com 1015 m de
altitude, a c. de 15 km a sul da Guarda. Apresenta o canto inferior
direito mutilado, afectando a leitura da linha 6 e da linha 7,
sendo no entanto possível, como chamou a atenção F. Curado (1989:
350), já existir a falha originalmente, conforme parece apontar a
inclinação oblíqua da 6ª linha, pelo que faltaria assim, apenas o
final da linha 7. As letras, de ductus grosseiro e irregular,
encontram-se profundamente gravadas, não oferecendo quaisquer
dificuldades de leitura, à excepção da 3ª letra de LAEBO, que
Untermann (1997) recentemente propôs corrigir-se para LABBO.
OILAM . TREBOPALA ./ INDI . PORCOM . LAE(uel B)BO ./ COMAIAM .
ICCONA . LOIM/INNA . OILAM . VSSEAM ./ TREBARVNE . INDI . TAVROM./
IFADEM [...?]/ REVE . TRE [...]
Trad.: "A Trebopala uma ovelha e a Laebo um porco, a Iccona
Loiminna uma vaca (vitela?), a Trebaruna uma ovelha de um ano(?) e
a Reva Tre-(?) um touro de cobrição"
Não nos interessa aqui debruçarmo-nos sobre o estudo linguístico
e etimológico dos vários componentes do texto epigráfico, mas sim
analisar a presença do grupo de vítimas da suovetaurilia romana -
oilam, porcom, taurom -, e a pertinência da sua correlação com as
cinco divindades mencionadas: Trebopala, Laebo, Iccona Loiminna,
Trebaruna e Reva. A Laebo (uel Labbo) é oferecido um porco, a
Trebopala e a Trebaruna uma ovelha, a Iccona Loiminna um animal que
podemos talvez identificar com uma vaca e finalmente, é Reva quem
recebe a oferenda maior, o touro semental.
Regra geral, consideram-se todos os teónimos em dativo. No
entanto, se isso se pode aplicar a Laebo - partindo do principio de
que se trata de facto de um tema em -o-, não invalidando, porém,
tratar-se de um nominativo indígena presente em -bho -,
dificilmente se aplica em relação a Trebopala e Iccona Loiminna,
ambos temas em -a que deveriam fazer o dativo em -ae/-e, á
semelhança de Trebaruna e Reva. Uma solução poderia passar por
considerarmos os primeiros três teónimos no nominativo e os dois
últimos no dativo, articulados assim, em dois blocos distintos,
possivelmente divindades menores/ divindades supremas. Todavia e
para efeito prático, nesta primeira abordagem, consideraremos
apenas a etimologia dos teónimos em si.
Para Trebopala é comummente aceite o composto treb- e -pala. O
radical treb-, amplamente atestado nas línguas célticas, não coloca
problemas quanto ao seu sentido de "povo, tribo"; já a voz -pala é
mais difícil de definir. Uma das propostas é a sua aproximação à
Víspala védica e aos Pales romanos, ambos vinculados à protecção
dos rebanhos (Dúmezil, 1958: 80 e Witczak, 1999: 66). A este
propósito, Patrício Curado (1989: 250) chama a atenção para o facto
de em Trás-os-Montes e no Gerês (Portugal), "pala" manter o
significado de "empenho, protecção". Trebopala encerraria, assim, o
possível sentido de "protectora da tribo", com eventual conotação
agrária.
Laebo encontra-se unicamente representado no Cabeço das Fráguas
- com um total de quatro dedicatórias -, tratando-se ao que tudo
indica de uma divindade tópica. A sua análise etimológica
apresenta, contudo, grandes dificuldades. Recentemente, Witczak
(1999: 68-69) propôs considerar-se Laebo no dativo do plural, por
aproximação a formas como o gaulês matrebo, que surje em vez de
matribus. Segundo esta interpretação poder-se-ia supôr em Laebo uma
derivação de Lahebo, possivelmente equivalente a Laribus. Esta
proposta choca, porém, com a ocorrência da terminação -po em todas
as outras dedicatórias conhecidas, a menos que se considere a
evoluçãp b>p, em testemunhos que são decerto posteriores. O
presente estado de conhecimentos não permite assim, avançar nada de
minimamente concreto relativo a esta divindade.
Iccona Loiminna corresponderá a um teónimo seguido de epíteto. O
teónimo em si parece corresponder-se ao gaulês Epona (Gil, 1980;
Maggi, 1983: 8 e Witczak, 1999: 66-67). A possível derivação do
epíteto de *louksmena, "brilhante" e a sua ocorrência numa das
inscrições em língua lusitana de Arroyo de la Luz (Masdeu, 1800),
poderia eventualmente sugerir estarmos ante uma divindade de 2ª
função. O difícil sentido etimológico, o facto desta inscrição
constituir a sua única referência e a impossibilidade de definir ao
certo o carácter da sua oferenda não permitem, todavia, tecer
quaisquer outras considerações.
Relativamente a Trebaruna, divindade amplamente atestada no
núcleo lusitano, estamos ante uma forma que comporta igualmente o
radical treb-, seguido de aruna. Blanca Prósper (1994) propõe para
-aruna, a relação com o gót. runs < *runós, "corrente, fonte",
assinalando a existência de diversos hidrónimos com esta raiz e a
possível relação etimológica com o celta Arawn, rei de Annwfn, do
muito profundo (*araunos). Buá Carballo, considera, por outro lado,
a derivação *Trebaro-, com paralelo no a.irl. trebar, "sábio"
(2000: 73-74). Atendendo a esta conjugação etimológica, somos
tentados a ver em Trebaruna, o possível sentido de "segredo do
povo", "a sabedoria do povo", integrável, portanto, no âmbito de
uma eventual divindade de 1ª função.
A última divindade mencionada é Reva, também de ampla difusão
cultual em toda a zona lusitano-galaica, seguida de TRE-, que
porém, não podemos classificar seguramente como seu epíteto. A
opinião mais difundida é a de que se trata de um tema em -a,
fazendo o dativo em -ae = e. Recentemente, com base na
possibilidade do R lusitano reflectir o D indo-europeu, Witczak
(1999: 71) avançou a proposta de Reue constituir o dativo de *Reus,
portanto, uma divindade uraniana assimilável a Diaus, Zeus e
Júpiter, corroborando assim a anterior interpretação de Mª de
Lourdes Albertos de Reva como derivado do radical *reg, "direito,
lei" (1983) e as várias situações de identificação desta divindade
com importantes orogenias.
Voltando agora à análise do rito sacrificial, teríamos assim uma
possível sequência de duas divindades de conotação agrária (ou de
3ª função) - Trebopala e Laebo -, a quem são oferecidos,
respectivamente, uma ovelha e um porco; uma divindade de conotação
indefinida que poderíamos colocar, a título de hipótese,
eventualmente no âmbito da 2ª função - Iccona Loiminna -, à qual é
sacrificado um animal também ele indeterminado, possivelmente uma
vaca(?); uma eventual divindade de carácter soberano - Trebaruna -,
à qual é, porém, oferecida uma ovelha e, finalmente uma divindade
suprema, uraniana - *Revs -, a quem é consagrada a vítima mais
importante, o touro de cobrição.
A primeira divergência que imediatamente se destaca entre este
rito e os seus eventuais congéneres védico e romano, é o facto de a
maior oferenda, o touro, ser dedicada a uma divindade de "primeira
função" e não a uma entidade de conotação guerreira. Por outro
lado, a comprovar-se a identificação de commaiam com "vaca",
teríamos uma segunda divergência e, ainda uma terceira, expressa no
sacrifício de uma ovelha a uma divindade de possível carácter
soberano como Trebaruna. Não sabemos se oilam corresponde a
"ovelha" ou "carneiro", ou constitui um neutro, o que também
dificulta a análise da sequência sacrificial. O contexto ritual -
de propriação agrária -, parece ser, porém, o mesmo nos três ritos,
encontrando-se entre nós sublinhado pela caracterização do touro
como semental e possivelmente, pelas entidades divinas
envolvidas.
In O Sacrifício entre os Lusitanos